Genomas

por Paulo Morais-Alexandre*

«A alma não é mais

Que transcendente imagem

De tudo quanto abrange

A luz do nosso olhar.

É o retrato perfeito

E fiel duma paisagem:

Tem uma serra ao fundo, e, depois dela, o mar.»

Teixeira de Pascoaes – “Alma”

Marco Ayres é conhecido por quem se interessa pelo que de estimulante e não académico se produz em termos de Pintura no presente e em Portugal. Efectivamente, desde que terminou o curso de pintura da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, mas não a sua formação já que essa durará até ao último dos seus dias, que tem produzido uma obra sólida, consistente que tem sido exibida em exposições colectivas e individuais, em espaços relevantes, nomeadamente na muito exclusiva galeria Art Lounge, e que já mereceram a outorga de prémios significativos, como o galardão João Barata da Sociedade Nacional de Belas Artes ou o prémio de Distinção em Pintura Bienal de Malta.

A sua investigação na esfera das artes plásticas é seminal à sua obra e passa por uma pesquisa muito aprofundada de diversas matérias que o ajudam a compreender, de alguma forma, o próprio sentido da Vida, recorrendo às mais diversas áreas do Saber, que depois sintetiza na sua obra. Retoma e actualiza as propostas conceptualistas, todavia se os postulados de Jan Dibbets ou Joseph Kosuth são recuperados é para, logo de seguida, serem ultrapassados, uma vez que o autor empreende, efectivamente, a realização do projecto que sabe jamais poder vir a ser concluído e é sobretudo revolucionário quando toma por bons postulados científicos e os carreia para o mundo da expressão plástica.

Há toda uma série de aprofundadas pesquisas nas mais diversas áreas, das quais citaremos apenas algumas, que ajudam a explicar o que cria e expõe. Chega a usar como ponto de partida para a organização das suas pinturas a teoria dos jogos pensada para a Economia, que aliás valeu o Nobel a John Nash, e em particular o enunciado de Albert W. Tucker, conhecido como “Dilema do prisioneiro” que estuda as relações entre os indivíduos e que, como o prova à saciedade Marco Ayres, pode ser utilizado experimentalmente nas artes, como é evidenciado nas suas telas.

De igual forma, encontra inspiração numa pesquisa científica que descodifica a nossa “biografia” enquanto espécie humana, a Autobiografia de uma espécie em 23 capítulos de Matt Ridley. Esta obra ajuda a explicar, a compreender, o conteúdo de cada uma das suas telas, mas também a forma como as mesmas se interligam.

O modo como Marco Ayres parte da descodificação do genoma para criar merece ser contada e é absolutamente fascinante. Para se compreender melhor a tarefa hercúlea que empreendeu e que jamais terá fim mas que servirá de leitmotiv perpétuo para a criação, em termos de explicação, imagine-se um livro gigantesco, composto pelos tais 23 capítulos, os cromossomas, sendo que cada um destes comporta milhares de histórias, os genes; depois cada uma destas histórias será também subdividida em parágrafos, exons, interrompidos por textos não sequenciais, os introns, até se chegar às palavras, codons e, por fim, à decomposição destas em letras, bases.

Vários motivos são explorados e trabalhados por si próprios valendo individualmente, embora depois se perceba que ligados a outros granjeiam novos sentidos, o mesmo sentido que tem a união das suas telas que, sendo por um lado tão particulares e unas, podendo viver descontextualizadas mas ganhando novos significados quando se ligam a outras e constituem famílias, em jogos sequenciais que nos remetem para uma realidade completamente nova. Realmente já não se está mais perante um fútil exercício de ordenação/reordenação de telas, antes há todo um novo mundo que se perspectiva. O autor acredita que as suas obras nos remetem para o mais profundo da nossa vivência colectiva, para o segredo da nossa Alma e sobretudo para a nossa Missão, ao demonstrarem um certo carácter messiânico e profético que entende como o ponto de advento de uma nova, a Era Lusíada, a tal de que falava o padre António Vieira, mas cuja necessidade de “inventar” era também propalada por Agostinho da Silva que a considerava tão inevitável quanto universal, como o deixou registado no texto “Considerando o V Império”: «[…] virá esse império estendido a todas as nações do Mundo, a todas elas revelando o Espírito, e a todas elas, e a todos os homens nelas, mergulhando naquilo que será a solução da antinomia vida-morte».

Imagine-se agora a transposição de tudo isto para a pintura, o que será certamente a tarefa para uma vida na Arte, uma vida plena de exposições, cada qual composta de telas que se individualizam mas que juntas contam a história de várias vivências, de existências de homens sábios que mudaram o mundo como o Mahatma Gandhi, Camões ou Picasso, que se constroem, desconstroem, que se ligam, interligam, juntam, afastam, até narrar por fim a história dessa louca humanidade que um dia chegará à almejada Idade do Ouro.

É tão só e simplesmente o que Marco Ayres propõe.

Fácil, não é …

* Professor do Ensino Superior. Regente das cadeiras “Problemas da Arte Contemporânea” e “História da Arte” na Escola Superior de Teatro e Cinema. Doutor em Letras, especialidade de História da Arte pela Universidade de Coimbra. Investigador do CIAC – Centro de Investigação em Artes e Comunicação, Escola Superior de Teatro e Cinema/Universidade do Algarve.

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